pR6nitSNH08tQNpWPA5eZO9DQjdlskzknDPg03Ak5Q0=all-head-content'/> QUARTIER LATIN: ÉPOCA DE INCÊNDIOS - Do fogo posto

terça-feira, 21 de abril de 2009

ÉPOCA DE INCÊNDIOS - Do fogo posto





O fogo posto exige muita arte.

Para preparar o incêndio é necessário estudar a direcção do vento, o estado químico do terreno, a hora do dia, a geografia minuciosa dos dispositivos de autocombustão e o timing exacto do detonador.

É nos preparatórios que o criador do fogo se sente o seu Autor.

Quando se conhece o terreno, melhor se actua.
Só os canhestros não percebem que há vantagens em operar nos mesmos lugares.
E então tudo responde como a um maestro conhecido, quebram-se as barreiras e o fogo deflagra ali mesmo, como uma perfeição divina.

Na cozinha, na sala, na varanda, onde tiver de ser.

Outras vezes, dispensa-se o preâmbulo.
Raras vezes, muito raras, mas acontece.
Ir direito ao assunto é uma urgência absoluta, não há tempo a perder, faz-se tudo de uma só vez, numa espontaneidade explosiva.
No fim, apetece exultar, apetece cantar, apetece rezar.
Pode-se até morrer, depois daquilo, porque o mundo gira todo à volta desse instante.
(Mas finge-se que não).
Só que estes requintes, que dispensam fases, são os do bom incendiário (aquele que, se for apanhado, iremos todos os dias visitar na prisão).

Noutras alturas, porém, os preparatórios são fundamentais.
Tanto quanto a minúcia do joalheiro no seu ofício, ou a obsessão do legislador na sua caça às bruxas.
Os que são verdadeiros são feitos sem evidência, quase sem tocar o alvo.
Porque a lenha é outra:
- Aquele cheiro, muitas palavras, alguns silêncios.
- Olhares desencontrados, emoções comuns, perscrutação incrédula.
- Muita sensualidade inesperada; desejo do outro, insatisfeito.
- E tanta sintonia improvável, revelada.

Na altura do cigarro final, acrescentamos ainda, mentalmente, três
(é o momento da água na fervura):

- Algum azar do destino.
- Perda de paz.
- Reencontros e fugas.


São os melhores.

Incêndios, digo.

Jamais se esquecem (e o cheiro fica).