terça-feira, 10 de fevereiro de 2009
Diálogos de fim de inverno
À saída da sessão, nos cadeirões do bar da baixa, onde se fuma. E que tem mesas de tampo transaparente, sob o qual se alinha um regimento de cartões de visita (bonito, este décor):
- Oufa! Sem fôlego!
Cilindrou os irrelevantes, excomungou os deuses e os heróis, abençoou os danados...
Como é que compreendeu isso tudo?
- Compreendi o quê? Só se compreende aquilo que se conhece, que se vive e se sente. Não há revelações.
- Precisamente. Viveu. Viveu e adivinhou inteligentemente.
- Isso... riso de troça... por aí está a ir muito bem! - Vê? Você também adivinhou, mas não conhece o caminho. Confesse lá que não.
- Engana-se, acho que sim, conheço. Tanto é assim quero urgentemente trilhá-lo.
- Ui! Trilhar não vale... magoada é que não!
- Nunca, há aqui demasiada harmonia para isso, mesmo se o incêndio foi acidental.
- sorriso triste - Acho que estamos a estragar tudo!
- Nada disso, estamos é a consertar, ou seja, a aceitar o catalisador.
- Não gosto que me chame acidental.
- Um acidente que muda a vida toda?
- silêncio, acende outro cigarro. perde-se no olhar dele.
Não, nem assim gosto.
Mas sinto que há algo que me trai. A curiosidade? Não, é mais uma necessidade (violenta, pensa ela)
- E ...?
- calada. Inala o cheiro dele.
- Porque é que te calaste?
- Porque a conversa tem de ficar por aqui. Eu tenho medo.
(não me trate por tu.)
- Tu?! Medo de quê? Do que os outros dirão?
- Não, tonto! Medo de ti, é claro.
(não me trates por tu!)
- Mas como se pode recear quem nos faz bem?
- Por isso mesmo! É que eu já não me lembrava de um olhar como o teu. Do que lá vejo.
- E vês o quê, pode saber-se?
- Vejo-me a mim, que me meteste lá.
- Já percebeste, então.
Diz-me só onde e quando.
- O quê? De que é que falas ?
- Duma viagem, claro. Não vês? Já é tarde demais para não irmos lá, agora.
- E tudo o resto?! Não gosto de facadas. Acho deplorável.
... a moral, a moral. (Morre por tocar nele)
- Na vida, minha cara, só tens valores porque alguém os quebrou.
- Hummm... Eu tenho noção disso.
- E eu não sei ser Petrarca... diz ele, pondo aquele ar sisudo que ela adora
- Não faz mal, deixa estar.
- Pa... (ele hesita) - Pantagruel, talvez?
ela dá com os olhos num dos cartões, que diz "Adriano Moreira" e pensa o que faz este aqui, enquanto lhe diz
-Que seja, então... Que sejas!
- Que eu seja o quê?
- O meu banquete, claro.