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sábado, 26 de dezembro de 2009

Natal, e não Dezembro


Entremos, apressados, friorentos,
numa gruta, no bojo de um navio,
num presépio, num prédio, num presídio,
no prédio que amanhã for demolido...
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sitio,
porque esta noite chama-se Dezembro,
porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois : somos duzentos,
duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
a cave, a gruta, o sulco de uma nave...
Entremos, despojados, mas entremos.
Das mãos dadas talvez o fogo nasça,
talvez seja Natal e não Dezembro,
talvez universal a consoada.

David Mourão-Ferreira


sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

História Antiga


Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

Miguel Torga


quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

White, red ... or blue Christmas?




Tudo parecia caminhar para isto há muito tempo. E chegámos mesmo aqui.
Não sei porque lamento (provavelmente ajudei).
Nada faz mesmo qualquer sentido, numa época que devia ser espiritual e - vá lá -, talvez adoçada de alguns êxtases terrenos, os que nos eram negados durante todo o resto do ano.
Ficou a palavra e como sinal, apenas o invólucro, o externo, o aparente.

Tem toda a razão, JGA. Vivemos um perfeito
nonsense.

domingo, 6 de dezembro de 2009

ANMP - O grémio dos eleitos




Não precisávamos de entrar na UE e conhecer a Carta Europeia de Autonomia Local para nos compenetrarmos da sua importância.
Os municípios portugueses são a base
autêntica do governo territorial (freguesias, distritos e regiões são inventonas administrativas sem eco histórico, o que é dizer, sem força própria, que não transcendem o fenómeno do voluntarismo da lei).

Ainda assim, o facto é que não ligamos nada. E devíamos.
Passamos ao lado.
Se olhamos,
mas não vemos o nosso próprio concelho, quanto mais o dos outros...
É como se a regra da territorialidade compartimentasse o
direito a interessar-nos.

Só que envolver-nos mais no conhecimento dos governos locais é um sinal de maioridade política, não é nenhum tique de paroquialidade.

Criticar, apoiar, exigir, rejeitar, acompanhar, vigiar: são actos que não são privativos das Inspecções Gerais de Finanças e da Administração do Território, que já têm muito que fazer...
Estão ao nosso alcance e devíamos exercê-los sem peias, porque a qualidade das democracias locais também é feita por nós (sendo que estão mais à mão de semear do que o a infinita clientela do Terreiro do Paço, o topo da pirâmide política que aguarda
estes eleitos).

Isto para dizer que, apesar de alguns casos exemplares, o nosso poder local mede-se pela qualidade de quem lá está: uma grande maioria péssima, sem habilitações nem cultura.
Podem até ter visão, à sua maneira. Mas não têm mundo que não seja o do corredorzinho abafado das geminações.
São os mercadores do brilho fácil, os milagreiros do betão, os heróis da banalidade e os culpados do mau gosto legalizado.
Nasceram com asas que não voam, não têm modos, não têm apresentação.
São, em suma,
o local no pior sentido da palavra.

Reuniram-se este fim-de-semana em Viseu, para mais uma parada anual do atraso da nação.
E lá foi o PM fazer umas promessas.

Salvo Beverly Hills e Bond Street, esteve realmente entre iguais.



sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Vergonha nacional




Há 29 anos estava eu numa certa sede de campanha, a cobrir a hora de jantar. Era o frete reservado aos novatos líricos e não numerários...
Quando a bomba rebentou, não acreditei, evidentemente.
Precisei de atravessar a rua para entrar num café apinhado de gente desconhecida, mas igualmente incrédula, de olhos cravados na televisão. E ouvir em directo a absurda notícia.
No ar, por todo o lado, a mesma sentença terrível: «Mataram-no». «Mataram-nos», diziam os cautelosos em murmúrios e os temerários em exaltações.
Numa mesa falava-se de Sidónio Pais: as memórias de um déjà vu nacional que nada me dizia.

Hoje é quase impossível transmitir a brutal violência do choque que sentimos.
Tal como é intraduzível o desânimo, o sentido de injustiça, a revolta, o desalento, o descrédito perante o país que perpetra um crime horrendo como este, exactamente na Hora H, ou seja, a escassos dias de conquistar o direito a uma democracia com norte, organizada e construtiva.

À noite, na tertúlia alargada do costume (policromada), desgastei-me, com outros, numa interminável discussão sobre o acerto da tese de atentado, contra os restantes paternalistas que troçavam dos nossos delírios de razão, embotada pelo sentimentalismo.
Era um aparente, mas hipócrita e falsíssimo bom senso, o deles. Tiravam-me do sério.

Camarate foi a minha primeira grande, brutal desilusão.

Quanto ao resto, sempre fiquei na minha, durante estas quase 3 décadas.
E agora sabe-se que a verdade estava desde o princípio debaixo dos nossos olhos.

Certo, certo, é que desde então nunca mais confiei neste país manhoso, de honra manifestamente duvidosa, onde as vozes do falso bom senso continuaram - e continuarão - a vingar.
Convenientemente.
Comodamente.
Por entre a cobardia total de um povo acostumado.